Dança, velho

Dança, velho

 

Desde a guinada programática após a reeleição em outubro de 2014, há quem desconfie que a presidenta Dilma Rousseff teria sido afetada por uma espécie de síndrome de Estocolmo. Vaiada, ofendida diuturnamente, ameaçada por processos de impeachment, Dilma parece ter se afeiçoado pela agenda econômica de quem a agride. Nem a fracassada passagem de Joaquim Levy, um representante de segunda linha dos "mercados", a trouxe de volta à realidade. Mais uma vez, para perplexidade de seus apoiadores nos movimentos sociais e nos sindicatos e por cima de outras iniciativas mais urgentes, a presidenta volta a apostar em uma medida defendida sobretudo pelo setor financeiro. Trata-se da reforma da Previdência. E verdade que a expectativa de vida tem aumentado, motivo para justificar ajustes periódicos no regime de aposentadorias. E também é fato que o governo oferece o controle dos proventos dos velhinhos em troca da aprovação da CPMF, essencial para o reequilíbrio das contas públicas a curto prazo. Não seria pouco para uma operação de tão alto risco político?

 

O plano foi colocado em marcha. O assunto dominou a reunião de um fórum de representantes empresariais, sindicalistas e ministros na quarta-feira 17, no Palácio do Planalto. Segundo o titular da Fazenda, Nelson Barbosa, a reforma pode levar o "mercado" a baixar os juros futuros, um alívio na rolagem da dívida pública hoje e um sopro de confiança entre os agentes econômicos. Na ante véspera, Jaques Wagner, da Casa Civil, viajara a São Paulo para jantar com empresários e dar um recado. Dilma abraçou a mudança na Previdência e quer deixar esse legado para os sucessores, sem se importar com a impopularidade. A presidenta iniciará em breve uma maratona de conversas com partidos governistas, a fim de convencê-los a apoiar as medidas. Se tudo correr como deseja o Planalto, o projeto vai ao Congresso em abril.

 

Antes de enviar um texto ao Parlamento, o governo quer evitar um erro cometido no fim de 2014. Naquela época, o Palácio do Planalto avalizou alterações no seguro-desemprego e no abono salarial sem negociar com sindicalistas. Desta vez, nutre a esperança de convencer os representantes dos trabalhadores da necessidade da reforma antes de colocar o bloco na rua. Algumas ideias, contudo, estão maduras na cabeça de Dilma e Barbosa. Uma delas: condicionar a aposentadoria a uma idade mínima, meta que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não alcançou em 1998 por falta de apenas um voto na Câmara dos Deputados. Segundo dados oficiais, o inativo brasileiro tem em média 58 anos. Patamar baixo, numa comparação internacional. Entre os países da OCDE, grupo de nações desenvolvidas, a média é de 64 anos.

 

Mudanças demográficas recentes baseiam as teses favoráveis à reforma.

 

No século XXI, informa o IBGE, a expectativa de vida no País subiu de 69 para 74 anos, enquanto a taxa de fecundidade das mulheres caiu de 2,4 filhos para 1,7. Os brasileiros vivem cada vez mais e haverá menos trabalhadores no futuro para custear as despesas do INSS por meio de suas contribuições previdenciárias. Nada urgente, porém. De 2000 a 2015, a Previdência incorporou mais de 10 milhões de beneficiários e conta agora com 28 milhões de segurados. Apesar do aumento de 61% no contingente, sua despesa como fatia do Produto Interno Bruto manteve-se sob controle. De 2003 a 2014, oscilou sempre na casa dos 6% do PIB. Em 2015, encerrou em 7,4%, conforme estimativas do governo, embora o PIB do ano passado ainda seja desconhecido.

 

A ausência de problemas urgentes é um dos motivos da resistência das centrais sindicais, tradicionais aliadas do governo petista e históricas adversárias de modificações nas regras das aposentadorias. No dia da reunião no Planalto com ministros e porta-vozes empresariais, os sindicalistas diziam que o governo deveria combater a sonegação no recolhimento da contribuição patronal ao INSS e que instituir a idade mínima pune os mais pobres, que começam a trabalhar mais cedo. Para eles, Brasília deveria concentrar esforços na busca da retomada do crescimento econômico e do emprego. "O governo está com o foco errado. O problema do País hoje não é a Previdência", diz Vagner Freitas, presidente da CUT.

 

Uma visão semelhante à do ministro do Trabalho, Miguel Rossetto, voz destoante no governo. Segundo Rossetto, o aumento do desemprego de 2015 em diante tem servido para alimentar a sensação de descontrole das contas da Previdência, por causa da redução da quantidade de empregados contribuintes. No ano passado, 1,5 milhão de vagas com carteira assinada evaporaram e não será surpresa se em 2016 desaparecer mais 1 milhão de postos, por conta da recessão. A taxa oficial de desocupação saiu de 4,3% em dezembro de 2014 para 6,9% um ano depois e terá novo galope neste ano, segundo todas as previsões. Rossetto esforça-se para ser um contraponto a Barbosa nas negociações, mas até aqui não tem conseguido influenciar Dilma Rousseff.

 

Se terá de suar para dobrar os sindicatos, a negociação do governo com o empresariado tende a ser tranqüila. De modo geral, os empresários são simpáticos a mudanças na Previdência. Vislumbram pagar menos impostos e enxergam possibilidades de incremento da produtividade da economia, com mais gente na lida por mais tempo. E a posição da maioria das confederações patronais, entre elas a CNI, da indústria, a CNC, do comércio, e a CNF, dos bancos. "Adiar (a reforma) é ampliar o problema. A tendência é a expansão do déficit", disse Sylvia Lorena, da CNI, após a reunião da quarta-feira 17. "Instituir uma idade mínima para a aposentadoria não só é viável, mas fundamental", afirmara dias antes o economista-chefe do Itaú, Ilan Goldfajn.

 

O economista também disse que o País precisa da CPMF e a volta do tributo é a razão para Dilma ter resolvido mexer na Previdência. A reforma é a moeda escolhida para oferecer ao Congresso e à sociedade em troca do apoio à taxação das movimentações financeiras. O projeto de recriação da CPMF foi despachado ao Legislativo com a receita vinculada ao INSS. O tributo, na visão governista, injetaria fôlego nos cofres públicos, permitiria elevar os investimentos estatais e, por tabela, empurraria a atividade econômica. Dessa forma, crê Dilma, o "mercado" talvez pare de falar mal do País e de contaminar o humor nacional.

 

Mais, acenar com a contenção de gastos futuros através da reforma é a solução imaginada por Barbosa para evitar cortes adicionais neste momento. Discretamente, o ministro luta para aumentar as despesas federais, esforço para estimular o PIB. Ele quer a autorização parlamentar para o governo produzir um déficit fiscal em 2016 e, quem sabe, até o fim do mandato de Dilma. O aval para este ano implica desfazer a última cartada ortodoxa do antecessor. As vésperas de sair de cena, em dezembro, Joaquim Levy uniu-se à oposição e pariu no Congresso uma meta fiscal de 0,5% do PIB para este ano. Ao contrário do que queria Barbosa, então na pasta do Planejamento, Levy excluiu da lei a possibilidade de o superávit virar déficit.

 

Bandeira histórica do PSDB, a reforma da Previdência tende a receber suporte do partido no Congresso, "desde que venha com o apoio do PT e da base do governo", segundo informa o senador mineiro Aécio Neves, presidente do partido. A disposição para dialogar sobre o tema é um exemplo de um retoque no figurino planejado pela sigla. Apesar de ter sido criado no governo Fernando Henrique depois da derrota na aprovação da idade mínima em 1998, o fator previdenciário passou a ser atacado por deputados do PSDB, esquizofrenia que rendeu ao tucanato a carteirinha de sócio do clube do "quanto pior, melhor". Pecha que a legenda quer tirar de si.

 

Já no PT a disposição para empunhar a bandeira da reforma é quase nula. Esfacelado pela Operação Lava Jato e com a economia em frangalhos, o partido teme por seu desempenho na eleição a prefeito e vereador em outubro. Empunhar uma proposta impopular neste cenário seria demais, pensam vários petistas. Pelo que se ouve entre eles, será uma surpresa se a bancada embarcar na cruzada reformadora de Dilma. Com aval do ex-presidente Lula, a sigla esforça-se atualmente para empurrar o governo a operar mudanças na política econômica a favor de uma retomada imediata do crescimento por meio do aumento do gasto público. Nada a ver com mudanças na Previdência.

 

A disputa pelos rumos da política econômica entre o PT e o Planalto está em ebulição. Um certo sentido de urgência tomou conta de reuniões recentes realizadas por Lula com alguns conselheiros. Na terça-feira 16, senadores do PT foram até Barbosa, interessados em saber qual seria a diferença do atual ministro para seu antecessor. Houve quem tenha saído desalentado da conversa. Na sexta-feira 26, o Diretório Nacional petista reúne-se e deverá aprovar um documento contundente, uma defesa de um plano emergencial com propostas de corte dos juros básicos fixados pelo Banco Central e de um reforço dos investimentos públicos mesmo à custa de déficit fiscal. "Há uma luta pela retomada do emprego e da renda, nós somos o partido do trabalho. Chegamos a ter a menor taxa de desemprego em 2014, mas agora ela aumentou e vai subir mais", diz o deputado baiano Afonso Florence, líder da legenda na Câmara.

 

Há mesmo razão para a urgência detectada pelo PT, na avaliação de Mareio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Para o economista, o mundo caminha para a quarta onda da crise iniciada em 2008, com um quadro similar àquele do terremoto capitalista dos anos 1930. Tal cenário, afirma, pegará o Brasil prestes a colher os efeitos mais dramáticos da recessão iniciada no ano passado, o desemprego. E, a se confirmar a queda de 4% do PIB em 2016, estimada na quinta-feira 18 pela OCDE, a recessão dará lugar à depressão. "A única solução passa por quem tem capacidade de gasto autônomo, o Estado, que pode operar com déficit agora e ter superávit mais à frente." Uma saída, aliás, que os países ricos deveriam adotar para salvar a economia global, de acordo com a agência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento, a Unctad. "Precisamos de medidas ousadas", completa Pochmann.

 

Barbosa não compartilha da análise pessimista. Acredita, como costuma dizer, que o País tem todos os instrumentos para resolver seus problemas. O que atrapalha, segundo ele, é o Fla-Flu político ter transbordado para o debate econômico, motivo de o ministro sentir-se sob ataque tanto de neoliberais quanto de progressistas. O desafio atual, na sua visão, é descobrir quais os pontos de convergência. Essa visão explica suas várias conversas recentes com representantes políticos e econômicos portadores de diferentes visões.

 

Pochmann não está, porém, sozinho ao prognosticar acentuados impactos sociais decorrentes do desarranjo econômico, nem ao desconfiar de imprevisíveis desdobramentos político-sociais daqui em diante. Líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Guilherme Boulos acredita que 2016 reserva demissões, arrocho salarial, precarização dos serviços públicos e enfraquecimento dos programas sociais. Uma piora das condições de vida capaz de se converter em uma onda de greves e manifestações. "E, se este povo for às ruas em 2016, não será para tirar selfies com a tropa de choque", diz Boulos, em alusão às imagens produzidas em marchas a favor da cassação de Dilma Rousseff ao longo do ano passado.

 

O próximo protesto pró-impeachment, aliás, está marcado para 13 de março. A fragilidade política do pai do processo, Eduardo Cunha, presidente da Câmara, indica que a deposição da mandatária tornou-se mais improvável. Mesmo entre partidários de Dilma Rousseff há quem ainda tenha receios e aponte a reforma da Previdência como um complicador desnecessário. Para Freitas, da CUT, será difícil segurar os trabalhadores na defesa do mandato presidencial, caso a petista insista em mudar o INSS.

 

"O governo anunciar uma reforma da Previdência em meio a um esforço de mobilização sindical não é inteligente", afirma o cientista político Roberto Amaral, ex-presidente do PSB e ministro na gestão Lula. Segundo ele, a crise econômica é conseqüência sobretudo da crise política, que colocou a presidenta e o PT nas cordas desde o fim da eleição de 2014. "Tem de enfrentar essa crise política, mas as medidas anunciadas pelo governo jogam contra", diz Amaral. "O presidencialismo é incompatível com um presidente fraco."

 

Talvez resida aí a explicação: sem força para enfrentar os interesses econômicos graúdos, o governo mira em um elo mais fraco que ele, os aposentados. .

 

Na última década, o número de beneficiários aumentou mais de 60%, mas as despesas do sistema previdenciário não explodiram

 

A presidenta e o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, não abrem mão de instituir uma idade mínima de aposentadoria. FHC tentou em vão

 

O GOVERNO ESPERA AGRADAR AO SETOR FINANCEIRO E DESANUVIAR 0 MAU HUMOR DOS AGENTES ECONÔMICOS


22/02/2016
- CARTA CAPITAL
WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn